"COGITO, ERGO SUM": PENSO, LOGO EXISTO - E DECIDO

08 de julho de 2022

Uma das frases mais conhecidas do mundo (em Latim, Cogito, Ergo Sum), é obra de René Descartes (1596/1650), filósofo, físico e matemático francês, que viveu no século XVII, num período muito conturbado da história, de tensões, até com crises de autoridade e ordem moral da igreja, diante do surgimento e avanço da Reforma Protestante de Martinho Lutero (1483/1546). Mas também crise no saber, do rompimento com a escolástica de Aristóteles, legado que já contava dezenas de séculos nesta linha do pensamento, alguns verdadeiros dogmas intocáveis.

 

Os gregos diziam observar a natureza e, ao interpretá-la, desvelariam a verdade contida na physis, substância inicial de tudo e que guia os destinos do cosmo. Os cristãos medievais fundamentavam a realidade em Deus, sendo a verdade revelada nas leis (alguns dogmas) que o homem deve seguir na sua vida redentora com o “reino dos céus” como prêmio no final da existência terrena. Ambas tinham a perspectiva do objeto, deduzindo a verdade (natureza/Deus), para considerar a filosofia como realista (res = coisas). O homem, neste contexto, é apenas um mero espectador da peça divina ou da maravilha do cosmo. Tudo é um palco, com enredo – alguns dizem destino – já determinado, onde cumprimos apenas uma função, sem ter nenhuma importância no papel de descoberta da realidade.

 

"Faço Parte", Leila Alberti - acrílico sobre tela - 2021

 

Antes de Descartes, Galileu Galilei (1564/1642) e Giordano Bruno (1548/1600) iniciaram estas mudanças no pensamento dominante dos saberes, questionamentos estes com os preços altos que pagaram pela sua coragem, muitas vezes com até falta de cuidados nestas posturas. Descartes, porém, foi muito hábil e cauteloso neste enfrentamento, pois conseguiu chamar a atenção para assuntos muito difíceis, como a aceitação da ciência por regra geral e não os dogmas seculares da igreja. Era o início do Iluminismo, a busca da verdade pela ciência.

 

Em Matemática, temos uma verdade segura: 2 mais 2 é sempre 4 e o universo funciona com regras claras e imutáveis da física e/ou matemática sobre todos os aspectos. Para entendermos a filosofia (incluindo a ciência), que possuem alto grau de subjetividade – e interpretação – não tão claro assim, temos que seguir 4 passos: buscar as evidências, fazer a análise das informações em várias partes, buscar a síntese ou ordem, a enumeração de tudo que está sendo analisado para não restar dúvida.

 

Isto está claro em sua obra “Discurso sobre o Método” (1637), que não chegou a ser combatida e contestada, em face de sua profundidade e pela forma como o ceticismo é levado até os limites, ou dúvida hiperbólica, como ele chamava. “Penso, logo existo” foi a legitimação desta crise do saber e afastamento dos dogmas, com a aceitação do conhecimento, com o direito à dúvida, incorporada definitivamente no discurso, do ceticismo ao extremo, que se resolve com o saber. Dogmas não podiam mais ser aceitos; agora teríamos que ter respostas.

 

“Funde suas certezas naquilo sobre o qual não pode restar a menor dúvida” era a afirmação que justificava os alicerces do saber, hoje entendido como “rigor cartesiano” que muda os rumos da filosofia e cria até a expressão atual, de sermos “críticos cartesianos”.

 

Dando crédito aos céticos, que poderiam até duvidar que o mundo e tudo que existe seria uma ilusão da nossa mente, que talvez não seja obra de um Deus benevolente, mas um gênio maligno nos enganando sobre todas as coisas, não teríamos como fazê-lo quanto ao fato que existimos. Se existimos não tem como nos enganar, é um fato irrefutável.

 

“Mais tarde, ao analisar com atenção o que eu era, e vendo que podia presumir que não possuía corpo algum e que não havia mundo algum, ou lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, resultava com bastante evidência e certeza que eu existia (...)”

 

Já no livro “Meditações Metafísicas” (1641) tem outras afirmações de “eu sou, logo eu existo”, conclusão de uma premissa, mas não um dogma pré-concebido, mas uma apreensão, o entendimento desta intuição imediata. Descartes pressupõe que existe pensamento porque já existe o sujeito. Corpo e mente são coisas distintas, que se relacionam a partir do momento que o ser humano se entende como tal e isso influencia toda a forma de como analisar o homem e os fenômenos da natureza até os dias atuais.

 

A equação mais difícil diz respeito ao nosso pensar, razão (cogito), que parte de uma dúvida, que é um tipo de pensamento, que só existe em nossa mente. Se estou pensando, eu existo, ou a mente existe. Então podemos duvidar de tudo, e duvidar é pensar, não podendo duvidar do pensamento. Todo ser antes de pensar, existe.

 

Na mesma linha, Francis Bacon (1561/1626) e seu empirismo, passa a formular os fundamentos dos métodos de análise e pesquisa moderna, onde a verdadeira ciência tem as bases no realismo experimental. Cita as formigas como empíricas pois acumulam para comer depois. As aranhas seriam dogmáticas pois extraem materiais de suas próprias substâncias, de si mesmas. As abelhas fazem o melhor, pois extraem a matéria das flores do campo e, então, por arte própria, trabalham e diferem esta matéria, transformando-a em mel.

 

Passando aos dias atuais, podemos traduzir os resultados dos questionamentos radicais de Descartes, como a investigação qualitativa, a racionalidade, que determina a razão – e não a simples regra natural dos gregos ou os dogmas da cristandade – como único meio de se chegar ao conhecimento.

 

E este conhecimento resultante destas rupturas, do incremento trazido pelo Século XVIII, ou “século das luzes”, não só trouxe mudanças na filosofia, nas instituições políticas, nas relações sociais e até na economia, bastando citar Kepler, Newton (na física e astronomia) e Adam Smith (nas instituições sociais), que precisaram romper com o sistema feudal.

 

Há, por evidente, aqueles que criticam o resultado demasiadamente positivista da rigidez racional de Descartes, que ganhou novos contornos durante o século XIX e, claro, estamos nos defrontando com questionamentos de algumas lideranças – nem tanto pensadores, é claro – mundiais atuais quanto à aplicação prática da ciência.

 

Sim, hoje, em pleno século XXI, assistimos a líderes, especialmente políticos populistas, alguns deles locais e com muita ênfase, negarem eficácia à vacina contra vírus pandêmicos, ser contrários à políticas de isolamento como forma de combater os contágios, por debochar de suas consequências, pregadores de conceitos dogmáticos saídos da era pré-cartesiana, com bíblias na mão, mantras de salvação terrena pelo comportamento servil e, claro, comprada com grandes somas de dinheiro para as “obras salvadoras” de alguns espertalhões, que sabem muito bem se articular junto aos ministérios e governos, usando a ignorância e ingenuidade incontestáveis das almas que, obviamente, precisam ser salvas de suas próprias credulidades. E, em breve, teremos que fazer novas escolhas – sim, decidir verdadeiramente – entre a ciência, a razão ou a sua exata negação, o que representa um retorno ao culto à ignorância e à simplificação da existência ao viver sem contestar e ganhar a salvação eterna como prêmio.

 

Se for para criticar os resultados das ideias cartesianas – as quais pratico muito no dia-a-dia – então, pelo menos, esqueçamos os salvadores de almas de araque e voltemos ao culto à natureza dos gregos, com uma grande pitada de estoicismo, que muito se aplica aos dias atuais. Já disse, mas repito: filosofar é equivalente a decepcionar e denunciar, é a ciência triste, segundo Theodor Adorno. Com muita racionalidade de Descartes e uma boa pitada de estoicismo, que pode ser a de Marco Aurélio, podemos introduzir alguma alegria – e conhecimento – na nossa curta existência.

 

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