Faz falta a vergonha na política

28 de abril de 2020

Os episódios da disputa entre Moro x Bolsonaro, no dia 24/04/2020, nos remetem a uma característica que é comum a personagens sem formação humanitária: a falta de vergonha, de pudor.

 

A mídia se limitou a noticiar as peripécias nada republicanas de ambos, um eleito presidente, depois de 30 anos de insignificância política, fazendo o discurso mais sincero sobre toda a sua incompetência e inaptidão, além de confessar vários crimes políticos que podem lhes custar o mandato e o outro, ex-juiz federal, galgado ao estrelato por mero sorteio dos processos da famosa Lava-Jato da Vara Federal de Curitiba. A chegada ao Ministério da Justiça foi o prêmio pela condução de processos penais que, se tiveram como pano de fundo o justo e necessário combate a “corrupção sistêmica que assola o país”, na verdade, determinaram o alijamento político de outros, com a prisão do ex-presidente Lula – sim, confirmada pelos tribunais superiores – para buscar a notoriedade. Já ministro, apoiando o novo governo em troca da futura indicação para o STF – acordo comprovado nas falas de ontem – ao conduzir a pasta, prevaricou mais de uma vez, porque nada investigou e compactuou com ele nas denúncias que pesam sobre a família do presidente, não conseguiu trazer o Queiroz à luz das “rachadinhas” do Rio de Janeiro e nada sobre os mandantes do crime da Marielle Franco, alegando serem de outras alçadas e não a sua, apenas para citar alguns casos mais notórios.

 

Esta falta de um passado nobre e sem maiores aptidões nos faz lembrar do Mito de Protágoras1, quando Platão coloca a questão da cidade ideal, com aspectos diferentes da democracia vigente. Prometeu e Epimeteu são chamados à uma tarefa para Zeus, sendo que Prometeu, mais inteligente, também deveria cuidar de Epimeteu, menos preparado. A tarefa era tratar de prover aos seres vivos todas as habilidades que precisassem para se defender e sobreviver na terra.
 
[1] O Mito de Prometeu, narrado por Protágoras, faz parte do diálogo entre Sócrates e Protágoras, na obra Protágoras, de Platão.

 

 

Epimeteu, então, conferiu chifres aos bois, dentes para os tigres, rabo e unhas para os macacos, asas para aqueles que fossem destinados a voar, força para os mais lentos, velocidade para os mais fracos, entre outros itens, e a todos os demais seres, com a devida compensação por habilidades. Ao retorno de Prometeu, disse-lhe que havia concluído a tarefa e que poderiam apresentar-se a Zeus. Porém, um destes seres, esquecido na distribuição, ficou sem nenhuma defesa, e este era o homem. Prometeu, então, vendo o erro do irmão, decidiu ir até a cidade dos deuses e subtrair outra habilidade, que não estava na proposta original e para não falhar na tarefa que lhes fora confiada. O fogo, roubado dos deuses, foi destinado ao homem e este, rapidamente, o dominou, forjou armas e ferramentas e o medo que trazia para afastar os demais animais.

 

Contudo, os homens, pequenos, frágeis e desprotegidos perto dos demais seres da terra, mesmo com o fogo, tiveram que ficar juntos para não serem atacados, se agrupando em comunidades. Mas, naturalmente, passaram a ter disputas entre si, justamente pelo poder do domínio do fogo, das armas e da difícil vida coletiva. Não demorou para que houvesse lutas e dispersões e, espalhados, voltaram a ser presas.

 

Constatando o fracasso na tarefa dos dois irmãos, Zeus chamou Hermes e ordenou que concedesse mais 2 habilidades, novos saberes aos homens, para que pudessem viver em coletividade: a justiça e a vergonha ou pudor. Vivendo coletivamente, teriam um saber diferente daquele que o fogo concedeu, porque este poderia ser adquirido. Com estas duas habilidades, eles poderiam viver em harmonia, desde que fosse distribuída equanimemente, de maneira espiritual, com a condição de que, caso houvesse injustiça nesta distribuição, para aquele incapaz no pudor e na justiça, haveria a pena capital, em nome de Zeus, por ser considerado flagelo da sociedade.

 

Protágoras, com este mito, indica que todo o cidadão que vive em comunidade, deve saber que os homens devem possuir a igual capacidade de aplicação da justiça e, também, ter pudor e vergonha.

 

Na nossa vida, recebemos ensinamentos sobre o respeito aos mais velhos, aos direitos dos demais, e fomos educados e cobrados a ter vergonha de certos comportamentos.  Quem não se lembra daquela nota baixa em matemática, que causou vergonha, até recuperar, na prova seguinte, e a grande satisfação de ter superado aquele deslize? Quem gosta de ser chamado de burro? Eu me lembro de vários episódios em que a vergonha de uma rara nota baixa ou de uma falha de comportamento foi o combustível, o desafio para melhorar naquele aspecto. Uma trágica apresentação de trabalho de Direito Penal sobre a criminalização do aborto, na PUC/PR, fez o falecido Prof. Otto Sponholz me provocar, ainda nos anos 1980, dizendo que “um rapaz daquela envergadura, não poderia produzir uma fala tão medíocre” e, depois daquele dia, dominar o conteúdo a ser apresentado e o modo – a oratória – passou a ser minha meta.

 

A formação educacional no Brasil, infelizmente, não consegue incutir estas duas habilidades nas pessoas, que as confundem com desrespeito, que não é politicamente correto, é bullying, isso quando os professores não são agredidos por tentarem ensinar e cobrar posturas éticas de seus alunos.

 

A nossa democracia está desprovida destes dois componentes básicos, no que nos ensina o Mito de Protágoras: justiça e pudor. Não se trata da vergonha pelas bobagens que podemos fazer, de vez em quando, que até podem render boas risadas, porque somos humanos e absolutamente falíveis. Estamos falando de “vergonha na cara”, de assumir o papel que temos na sociedade e onde muitos se colocam à frente das coisas públicas apenas por egoísmo e vaidade pessoal.

 

Bolsonaro e Moro demonstraram, no dia 24/04 que não tem esta vergonha, pois protagonizaram, ao longo de 3 dias, um espetáculo de ignorância das coisas e do interesse público, esquecendo da urgente e necessária administração da Pandemia do Coronavírus, que assola o mundo e mata centenas de pessoas por dia no Brasil. Moro, no alto de sua excentricidade vingativa, saiu atirando, usando a tática de guerra da “terra arrasada” contra o ex-aliado, no momento mais grave do enfrentamento da crise da saúde brasileira, mostrando toda a sua falta de pudor, destruindo tudo que o agora inimigo poderia usar a seu favor, demonstrando quanto medíocre é, igualando-se ao mesmo, justamente na falta destas qualidades que tratamos aqui. Ambos usaram e abusaram apenas do fogo. Foi um dia em que os egos inebriaram uma nação inteira, fazendo-nos esquecer da grave Pandemia, para sermos obrigados a assistir 2 shows de horrores, para delírio da imprensa e da massa.

 

Tudo isso devido ao apego ao mundo particular de picuinhas egoístas e próprias de quem não entende nada das habilidades que todos nós recebemos, seja de Hermes ou não, seja por ordem de Zeus, e poucos as usam adequadamente. Sem ter vergonha, não existe democracia. E 24/04/2020 será sempre lembrado como um dia triste para nossa história.

 

 

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