Finais Felizes São Etéreos
18/11/2025
Finais felizes são frágeis como o sopro que apaga uma vela. Desaparecem. Dissolvem-se. Não sustentam memória. Romeu e Julieta morrem no final — e talvez precisassem mesmo morrer. Shakespeare poderia tê-los conduzido ao “felizes para sempre”, como tantas narrativas que se resolvem no conforto da esperança. Mas não: ele preferiu o trágico, porque o trágico marca.
O amor, para ser eterno, quase sempre exige um sacrifício. E quando os amantes são jovens, esse sacrifício parece ganhar ainda mais sentido. A juventude arde rápido — como as flores mais belas, que exibem glória por poucos dias antes de ceder ao tempo.
O namoro, sobretudo aquele de juventude, tem algo de vida breve e intensa; por isso se transforma em saudade tão facilmente. É fogo de claridade curta, mas que ilumina para sempre o território da memória. Talvez por isso Romeu e Julieta precisassem morrer: para que sua história pudesse viver eternamente. Um final feliz os tornaria esquecíveis. O trágico os consagra.
Para que o amor permanecesse inalterado, seria necessário que nós também permanecêssemos jovens, puros, ardentes — imóveis diante do tempo — como prometem certos mitos religiosos que falam de ressurreições e corpos glorificados. Mas, na vida real, o amor prolongado é sempre atravessado pela imperfeição do cotidiano, a rotina e o desgaste das relações. Parece sobreviver melhor quando existe um espaço, uma distância — um intervalo que permite que o desejo respire.
Gabriel García Márquez nos apresentou isto com perfeição em “O Amor nos Tempos do Cólera”. O amor desesperado de Florentino Ariza por Fermina Daza não se alimentava do toque, mas da ausência. Ele vivia no território da saudade, onde o erótico não depende da posse, mas da falta. O erótico é o que se insinua: o pedaço de pele entre a manga e a luva, a pequena fresta entre a blusa e a calça. O que se sugere e não se mostra torna-se infinito. É pela fenda mínima que a fantasia se instala e cresce.
Namoramos, no fundo, com nossas próprias fantasias. Amamos no outro aquilo que supomos ser reflexo de nós mesmos — como lembrou Fernando Pessoa:
“Ninguém a outro ama senão o que de si há nele ou é suposto haver.”
A arte chinesa sabe disso: as brumas, as montanhas escondidas, os contornos imprecisos. O mistério vive no que não se revela. A arte que diz tudo — quase pornográfica — mata a imaginação. A fantasia precisa de névoa, de dobras, de sombras onde dançam ninfas e faunos. Rainer Maria Rilke dizia que a arte é um suspiro utópico em direção ao inalcançável. Talvez seja exatamente isso que buscamos na experiência fugidia do amor: a utopia de um universo inteiro finalmente amando.
Mas vivemos em tempos estranhos. Em 1984, escrito 40 anos antes, George Orwell mostra Winston vigiado por todos os lados, impedido de abraçar a mulher amada — como se amar fosse o crime máximo contra o poder. Quando enfim escapam ao campo aberto e se entregam um ao outro, Winston entende o óbvio: o amor é um ato político. Um gesto de resistência contra o controle absoluto. Quem vigia não ama. Quem ama não consegue vigiar. Quem se embriaga de poder perde a delicadeza necessária ao enamoramento. Talvez por isso o amor seja perigoso para quem governa — e libertador para quem sente.
Porque o amor, quando verdadeiro, desloca o centro do mundo, nos faz vulneráveis e, ao mesmo tempo, profundamente humanos. E finais felizes? Esses continuam sendo etéreos — não porque não existam, mas porque são feitos da mesma matéria fugidia do instante.
Luís Molossi
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