O Insuportável e o Pálido
21/09/2024
O "pálido delinquente” é a pessoa que ousa violar as regras e, em seguida, se recusa a pagar o preço. O que não é o Estado político atual – e seus cidadãos – senão uma afirmação da vontade de poder e o seu exercício. E se não for possível instala-se o ressentimento, que é a negação desta mesma vontade. Estes universos podem ser explicados como a cultura exuberante e a acanhada. No primeiro caso temos os melhores sendo os melhores, como explicam e defendem os neoliberais do Século XXI. Na verdade, esta exuberância advém do medo. É feia, fraca de princípios, como podemos ver nos exemplos recentes da direita radical, anti-ciência e arrogante.
Claro que esta dicotomia insuportável x pálido delinquente vem dos escritos de Nietzsche, especialmente em “Assim Falou Zaratustra” (1883/1885) onde ele inicia se referindo à satisfação secreta de alguns filósofos da Grécia Antiga que “sabiam haver muito mais escravidão do que parecia”. Como se a escravidão fosse algo natural, aceitável, ao menos aos “exuberantes” que a podiam comprar. A marca do “super-homem” ou homem superior é a sua autoconquista afirma o personagem do livro. Sim, você também ouviu isso na canção do Gilberto Gil... Os melhores, os bons do nosso tempo não o são verdadeiramente, como não o foram os aristocratas gregos de outrora. Mas piores ainda são os atuais “melhoradores”, os pregadores de um mundo melhor, os perpetuadores do ressentimento, da palidez delinquente que é a antítese da exuberância.
Estes aforismos, que podem ser do próprio Nietzsche, nos propõe um mundo melhor para todos, mas que, afinal, seria melhor apenas “para alguns” e a natural dúvida de qual seria o lugar que cada de um de nós deve ocupar neste eterno retorno. Alguns liberais modernos chamam isso de meritocracia. E se formos nós alguma coisa parecida com os escravos gregos modernos, eternamente condenados à prisão – tolerável – do ressentimento?
Alguns até defendem a ação do criminoso pálido do personagem Raskólnikov, que mata a velha agiota que o perturbara diariamente, no livro “Crime e Castigo” (1866) de Fiódor Dostoiévski: a expiação da culpa só vem no momento em que este confessa à prostituta Sônia, com quem vive as cenas mais fortes do romance, dando ao enredo o fechamento esperado do que chamamos “Deus ex machina”, expressão latina que significa “Deus surgido da máquina”, indicando uma solução inesperada, improvável e mirabolante para explicar uma situação insolúvel, especialmente em obras ficcionais. Há neste episódio alguma potência para a superação da culpa do ressentido. Mas o que há de nobre neste assassinato? Alguns até podem vibrar com a vingança do devedor achincalhado contra o avaro agiota. Ajoelhar-se em público e pedir perdão a Deus por este mesmo assassinato é o exemplo clássico maior da palidez criminosa.
No fundo o pálido não se arrepende do crime, mas apenas do risco de ser pego e condenado por isso. “É o inimigo, inválido e tolo”, nas palavras de Zaratustra. Seu crime ainda é vulgar, mesmo que o criminoso queira se igualar aos extraordinários da história, das perversões cotidianas que criam assassinos e atiradores insuspeitos, como o de Columbine (20/04/1999) e de Blumenau (05/04/2023). Eu conheço muitos sujeitos insuportáveis, que eu chamo de liberais imbecis modernos; temos que conviver com eles. Mas conheço muito mais pálidos delinquentes ressentidos. Ambos perigosos, às suas maneiras.
Luís Molossi